CERVANTES, SANCHO HERDEIRO DA CAVALARIA


        Depois da morte de Camões, em 1580, surgiram na Espanha e na Inglaterra dois escritores que logo viriam a ser reconhecidos como expoentes daquilo que Goethe chamaria de Literatura Mundial ( “Weltliteratur”): refiro-me a Cervantes (1547- 1616) e Shakespeare (1564 – 1616).
        Oito anos após a morte de Camões, a “Invencível Armada” dos espanhois tentou invadir a Inglaterra, porém a poderosa frota castelhana foi severamente danificada por uma tempestade. Cervantes tinha, na ocasião, 41 anos. Shakespeare tinha 24 anos.
        Sabemos pouco a respeito deles. Cervantes nasceu em Alcala de Henares, Shakespeare em Strattford on Avon. Shakespare se casou com Anna Hathaway aos 18 anos de idade, Cervantes se casou com Catalina de Salazar y Palacios, em 1584. E, no ano mesmo em que se casava, teve, com outra mulher, Ana Franca, uma “filha natural” chamada Isabel.
        Cervantes , tal como Camões, era brigão. Por ter machucado um certo Antonio de Sigura, foi para a Itália. Engajado na Marinha espanhola, participou da batalha de Lepanto, em 1571. Ferido (perdeu a mão esquerda) recuperou-se e continuou na Marinha. Capturado por piratas sarracenos, permaneceu cinco anos na Argélia. Tentou fugir várias vezes, em vão. Esteve ameaçado de ser morto por empalamento. Uma de suas irmãs, Andréa, que era prostituta, ajudou a pagar o resgate que lhe possibilitou voltar à Espanha.
        Morava em Valladolid com a mulher, Catalina, com a “filha natural”, Isabel, e com as irmãs Andréa e Magdalena. Também morava com eles uma “filha natural” de Magdalena chamada Constanza. O povo da cidade apelidou as cinco mulheres de “as Cervantas”.
        Miguel Cervantes se tornou comissário de abastecimento, funcionário da administração, encarregado das provisões militares. Foi preso quatro vezes, acusado de irregularidades. Um dos casos, segundo consta, envolvia um conflito com a Igreja (o que era, com certeza, muito inconveniente, na época, com a intensificação das atividades do Tribunal da Santa Inquisição e com o clima cultural criado a partir do Concílio de Trento e da Contra-Reforma, especialmente sensível na Espanha).
        Concentrou-se, então, na redação de sua obra-prima: o Dom Quixote. Em 1605, o livro foi publicado. O sucesso foi imediato. Cervantes estava trabalhando no segundo tomo, com as novas aventuras de seus personagens famosíssimos, quando viu numa vitrina um livro recém-lançado, que era uma continuação do Quixote, assinada por um sujeito não identificado, que adotou o pseudônimo de Avellaneda.
        A autêntica continuação, escrita por Cervantes, só apareceu em 1615, um ano antes da sua morte.

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        A importância de Dom Quixote não tem como ser exagerada. A narrativa das trapalhadas do intempestivo cavaleiro andante e do seu bizarro escudeiro desencadeou na literatura o movimento de um novo gênero: o romance.
        Dom Quixote é um fidalgo relativamente pobre, que se entrega obsessivamente à leitura de novelas de cavalaria, e enlouquece. Logo no início do seu romance, Cervantes deixa isso muito claro: Dom Quixote é maluco: “del poco dormir y del mucho leer, se le secó el cerebro, de manera que vino a perder el juicio”.
        Identificado com os princípios da cavalaria andante, Dom Quixote se dispõe a sair pelo mundo, para corrigir as injustiças, proteger as donzelas, defender os humilhados e ofendidos. Recruta um lavrador que trabalhava em suas terras para acompanha-lo como seu escudeiro: Sancho Pança. E Cervantes também informa a seus leitores, desde o primeiro aparecimento de Sancho, que ele era muito burro e muito ignorante (“muy poca sal en la mollera”).
        Na medida em que as aventuras vão se sucedendo, as coisas vão acontecendo, os leitores tendem a relativizar a loucura do patrão e a burrice do empregado. Cervantes, contudo, não facilita para os leitores uma avaliação rápida desse processo. De fato, ele evita que sejam separados o heroico e o ridículo, o sublime e o grotesco.
        Sancho é sufucientemente idiota para sair de casa, deixando mulher e filha, seguindo dom Quixote em troca da promessa de que um dia se tornaria governador de uma ilha. Mas nem por isso deixa de um dia perguntar pelo salário. Não vai receber nenhum salário ? O patrão lhe explica que, na leitura das novelas de cavalaria, jamais encontrara algum escudeiro que recebesse salário. Comunica-lhe, entretanto, que o incluiu em seu testamento. Valerá como uma compensação ? O escudeiro cita um provérbio que não o mostra muito convencido: “Más vale un toma que dos te daré”.
        De vez em quando, Dom Quixote se irrita com as trapalhadas de seu escudeiro, chama-o de “velhaco”, “covarde”.Sancho reconhece suas limitações, menos no plano moral do que no plano intelectual: “soy um asno”. Tenta, porém, convencer Dom Quixote a desistir de alguns de seus empreendimentos delirantes. Procura (em vão) adverti-lo de que os gigantes contra os quais ele investe não são gigantes, mas meros moinhos de vento. Esforça-se inutilmente por dissuadi-lo de libertar doze delinquentes perigosos, que estavam sendo transportados de uma prisão para outra.
        Sancho fez apelos a Dom Quixote , pedindo-lhe que desistisse da exibição de coragem que o cavaleiro andante deu, ao entrar na jaula de um casal de leões de um circo (uma aventura que, afinal. não teve consequências catastróficas, dada a indiferença dos felinos).
        Em outro momento, Dom Quixote interferiu com boas razões numa situação com que subitamente se defrontou: impediu que um patrão que estava chicoteando um jovem empregado prosseguisse no castigo brutal. E, diante da resistência do espancador, espancou-o. Infelizmente essa intervenção justificada do justiceiro teve, afinal, uma consequência ruim: o patrão violento esperou que Dom Quixote se afastasse e retomou a surra no jovem, com furor redobrado.
        Dom Quixote é galanteador, educado, gentil, mas não é entusiasmado pelo sexo feminino. Magro, cinquentão, um tanto desajeitado, ainda desperta carinho em algumas mulheres, porém não confia nelas. Está convencido de que as mulheres fazem sempre as piores escolhas: “es natural condición de mujeres desdeñar a quien las quiere y amar a quien las aborrece”.
        Todo cavaleiro andante, no entanto, deve ser perdidamente apaixonado por uma dama e deve dedicar-lhe suas suas façanhas. Dom Quixote, então, se declara apaixonado por uma camponesa da região em que vivia, a lavradora Aldonza Lorenzo, com a qual não tinha nenhum contato.
        Idealiza a moça, muda-lhe o nome para Dulcinéa del Toboso, presta-lhe homenagens. Sancho vê tudo isso com saudável desconfiança. Como poderia levar a sério esse amor postiço ?
        Sancho mostra humor e esperteza na oposição que faz a essa devoção de Dom Quixote pela camponesa. Quando o cavaleiro andante resolve mandar uma carta de amor à “estrela da sua sorte”, cabe ao escudeiro leva-la. De volta, o emissário, que vinha sendo aguardado com ansiedade pelo patrão, deve fazer um relatório sobre o que aconteceu. E Sancho explica que a moça recebeu a carta, ficou sabendo que era uma carta de amor, porém não pôde le-la, porque era analfabeta. Tratando-se de correspondência íntima, não podia pedir a ninguém que a lesse para ela. Por isso, também, não podia responde-la.
        Como Dom Quixote queria que o escudeiro falasse da beleza e da elegância de Dulcinéa , Sancho acrescentou uma impressão que irritou profundamente seu patrão: disse-lhe que ela devia estar trabalhando muito na lavoura, pois sentiu nela o bodum do suor...
        Em suas andanças, os dois chegaram a um lugar que pertencia a um duque poderoso. O duque e a duquesa se divertiram tanto com a dupla insólita que resolveram fazer uma experiência, entregando o governo da ilha de Barataria a Sancho.
        Surpreendentemente, cumpria-se a promessa feita a Sancho por Dom Quixote. Desaparecia o principal indício de que a excessiva credulidade do lavrador era uma consequência da sua cretinice. No mínimo, Sancho era um cretino que tinha dado certo. De fato, deu certo porque não era cretino. Seu desempenho no governo da ilha, de resto, provou – ao contrário - que ele era muito inteligente.
        Ministrando a justiça na ilha, o novo governador ficou logo famoso pelo modo como encaminhou um caso que parecia insolúvel. Dois homens se apresentaram: um dizia que havia emprestado dez moedas de ouro ao outro e o outro, um velhote, reconhecendo que as recebera, declarava que as havia devolvido e que estava disposto a jurar. O governador mandou que se fizesse o juramento. O velhote passou sua bengala ao reclamante e jurou por tudo que lhe era mais sagrado que tinha entregue as moedas ao outro. Sancho pensou um pouco e pediu que o velhote lhe emprestasse momentaneamente a bengala. Examinou-a, então, e em seguida a quebrou. De dentro da bengala quebrada rolaram as dez moedas.

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        Como o governo de Sancho acabou ? Inimigos do duque se dispunham a invadir e ocupar a ilha de Barataria. Admitindo que não tinha nenhuma competência militar, Sancho renunciou ao cargo. Dom Quixote e seu escudeiro voltaram para casa.
        É interessante observarmos o quanto ambos haviam mudado. Dom Quixote vai abandonando sua crença de que misteriosos magos perversos, feiticeiros demoníacos, interferiam constantemente na sua vida. Os leitores que acompanharam suas proezas se deram conta de que, mesmo sendo maluco, o cavaleiro andante, com seus ideais, sua generosidade, tinha em seu coração um núcleo indestrutivel de dignidade humana, que o ridículo não conseguia atingir.
        E em Sancho a transformação é mais evidente. Quando Dom Quixote adoece e “recupera o juízo”, é posto num leito, onde fica aguardando a morte, Sancho, o camponês pacato, o lavrador ignorante, que a serviço do patrão havia descoberto o mundo, irrompe no quarto, fazendo-lhe um apelo: pede-lhe que saia da cama, que não morra, que parta para novas aventuras.
        Fica claro que o amor que realmente conta na história de Dom Quixote não é a devoção do cavaleiro andante à Aldonza que ele não conhece ou à Dulcinéa que ele inventou para povoar aquilo que o seu delírio tinha de mais arbitrário, o isolamento a que ele mesmo se condenou.
        Quem o ajudou a vencer a solidão, quem lhe permitiu superar o isolamento, foi Sancho Pança. Mesmo que careça de sensualidade, mesmo que não tenha dimensão homossexual visível, o afeto que une Dom Quixote e Sancho é de natureza amorosa, e bem mais verdadeiro do que a devoção a Dulcinéa.
        O apelo de Sancho a Dom Quixote explicita uma mudança que parecia impossível: em sua derrota devastadora, moribundo, o patrão é concitado por seu criado a sair pelo mundo afora, para corrigir injustiças e desfazer opressões. Dom Quixote já estava morrendo, não podemos saber se ouviu e entendeu o que o escudeiro lhe dizia.
        Contudo, podia morrer tranquilo. Ao menos uma pessoa – Sancho – havia assimilado os valores e os princípios da cavalaria andante.


NOTAS
Castro, Américo – Hacia Cervantes, ed. Taurus, Madrid.